Há cerca de uma década, assisti nos Estados Unidos ao seminário de um pesquisador brasileiro na área do agronegócio. O tema exato da palestra, já não me lembro. Um comentário proferido no início da apresentação, porém, tem me acompanhado desde aquele dia. Enquanto mostrava algumas fotos de fábricas e lavouras brasileiras, o pesquisador afirmou, como quem não quer nada, que “aquilo nem parecia Brasil”. Naquele caso, “não parecer Brasil” era um elogio.

Ao escutar a frase, fiquei desconcertado. Naquela “despretensiosa” avaliação, toda a força do elogio derivava de uma negação. Nas palavras do pesquisador, o agronegócio brasileiro, essa ideia carregada de abstração, devia a sua pujança não tanto a um conjunto de características próprias, mas ao contraste com as propriedades negativas de outra abstração, a ideia de Brasil.

Por que regiões como Ribeirão Preto ou o Matopiba “não se parecem Brasil”? O que seria, afinal, esse Brasil incompatível com imagens de Chapecó ou de Lucas do Rio Verde? São perguntas inúteis. Talhadas em um cenário idealizado a fim de garantir a complacência da plateia, alegorias como a ideia de “oásis de eficiência” minam as bases para qualquer esforço analítico sério. Nenhuma interpretação coerente do agronegócio brasileiro – ou, diga-se de passagem, de qualquer setor econômico – deveria se basear na ideia de “exceção à regra”. Afinal, as conquistas e problemas do agronegócio brasileiro nos fornecem uma clara demonstração das profundas contradições da sociedade em que está inserido.

Com o tempo, percebi que o pesquisador não estava sozinho. Na última década, deparei-me com raciocínios semelhantes inúmeras vezes. Talvez o melhor resumo seja a expressão “o Brasil que dá certo”. Quando separamos o “Brasil que dá certo” do “Brasil que dá errado”, podemos nos rodear daqueles elementos da sociedade brasileira que, acreditamos, apontam um futuro mais otimista. De maneira arbitrária, isolamos o mal em categorias amplas – a política, a burocracia, a corrupção, a miséria – e o afastamos das nossas ações. Apesar dos problemas, avançamos. Embora sejam muitas as razões para o desânimo, há um Brasil que nos orgulha.  

Traçando linhas imaginárias que separam “o Brasil que funciona” do “Brasil sem futuro”, muitos torcem apaixonadamente para que o primeiro prevaleça – apoiando-se, sabe-se lá o motivo, na ideia simplista de que esses “dois Brasis” competem diariamente pela supremacia. O “Brasil que dá certo” é também um país capaz de importar as mais diversas tendências e ideias do mundo desenvolvido e aplicá-las em suas organizações. Termos como “responsabilidade social”, “governança corporativa” e “sustentabilidade” são parte integrante da identidade projetada por esse Brasil que “nem parece Brasil”.

Voltei a lembrar do “nem parece Brasil” ao ler as notícias sobre o assassinato de João Alberto Freitas. Seria a brutalidade com que João Alberto foi espancado parte do “Brasil” imaginado pelo pesquisador? E desastres como Mariana e Brumadinho, entrariam nessa categoria de “Brasil”? Como explicar escândalos como os revelados pela “Operação Carne Fraca” em organizações com tamanha capacidade de competir em mercados com os mais variados graus de exigência? Qual a linha que separaria a operação de empresas tão relevantes no cenário nacional das tragédias que povoam o noticiário?

Há momentos em que somente o repugnante nos resgata o contato com a realidade. Eventos como o assassinato de João Alberto Freitas revelam a futilidade de qualquer exercício de separação entre o “Brasil que dá certo” e o resto, ignorando as profundas ligações entre as supostas “ilhas de eficiência” e a realidade ao redor. Da mesma forma, a brutalidade e a negligência revelam a superficialidade com que empregamos pilares caros a esse Brasil tão confiante em si mesmo, como “responsabilidade social”, “governança corporativa” e “sustentabilidade”, em uma clara demonstração da nossa dificuldade de adaptar termos abstratos a uma realidade tão complexa como a brasileira.

Um dia a conta chega, porém. Transformações perenes implicam o pleno reconhecimento de todas as imagens e realidades que compõem o Brasil. Nesse sentido, é necessário que esse “Brasil que dá certo” reconheça de uma vez por todas a sua responsabilidade na construção de uma sociedade mais sensível aos desafios enfrentados pela maioria da população nacional. Somente assim daremos um significado concreto a toda a parafernália retórica utilizada para legitimar as práticas corporativas em um país rico, mas profundamente injusto, como o Brasil.

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