Por Enrique Anastácio Alves*

O café tem o continente africano como centro de origem e, apesar de existirem diversas espécies do gênero Coffea, apenas as espécies Coffea canephora e Coffea arabica têm importância econômica em escala mundial.

Mas, ainda que as demais espécies do gênero não sejam massivamente exploradas, elas representam uma riqueza genética imensa e a sua preservação pode ser importante para a manutenção do status do café como principal bebida do mundo. Em momentos de adversidades climáticas, sanitárias ou de novas demandas do mercado, estas espécies representam um verdadeiro banco de acesso a genes e alelos que podem, no futuro, literalmente, representar a salvação da lavoura.

Apesar de existir uma variação sazonal, de forma geral, a espécie arábica é responsável por ¾ da produção comercial de café no mundo, o restante cabe à espécie canéfora (conilon e robusta). O Brasil tem posição de destaque, sendo o maior produtor, exportador e segundo mercado consumidor desse grão no mundo. Especificamente para o café canéfora, o maior produtor é o Vietnã, com cerca de 30 milhões de sacas de 60 kg, sendo o Brasil o segundo do ranking. 

Nosso país, apesar de não ser o centro de origem, é, definitivamente, a nação do café. Detém, cerca de 30% do mercado mundial, com uma produção estimada para a safra 2020 que pode variar de 57 a 62 milhões de sacas beneficiadas de 60 kg. Entre 14 e 16 milhões de sacas são estimadas para a produção brasileira da espécie canéfora, cujos principais estados produtores são, respectivamente, Espírito Santo, Rondônia e Bahia, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab.

Não há dúvidas da importância econômica, social e ambiental do gênero Coffea para o mundo. Acredito que, o pastor Kaldi percebeu isso no momento em que viu suas cabras felizes e saltitantes ao se alimentar de frutos vermelhos que surgiam de plantas que se desenvolviam nas bordas das florestas. De lá para cá, muita coisa mudou em relação à forma de produção e consumo. 

Até chegar à posição de destaque em nossas mesas, o café enfrentou preconceitos e muitos desafios. Já foi cultuado, explorado, demonizado e execrado. Mas, como a mitológica Fênix, o café ressurgiu das cinzas, ou melhor, do pó. Sempre se reinventando, num equilíbrio entre tradição e modernidade, conquistou o mundo e tem uma taxa de crescimento anual de consumo superior a 2%. Tanto que, em plena pandemia de COVID-19, qual foi o produto que teve seu consumo aumentado nos lares? O café, que é o nosso “álcool em gel” para matar o marasmo e nos animar nos momentos de isolamento. 

A nossa necessidade diária de café nos faz modificar constantemente nossos hábitos de consumo. Amamos os métodos de extração preconizados pelas máquinas modernas e talentosos baristas. Nos acostumamos a socializar enquanto degustamos estas verdadeiras iguarias. Mas, tempos de isolamento social surgiram. O que fazer? Voltamos a cultuar o preparo doméstico do café, numa verdadeira onda retrô. Esta bebida novamente faz parte dos momentos de família, ou de introspecção diante de um livro. 

Iniciativas de coffee delivery começam a surgir em algumas cafeterias. Somos criaturas diversas, curiosas e bastante reativas às mudanças. Esta semana tive um episódio curioso. Ao presentear uma amiga com um pacote de Robusta fino, tive que enviar um tutorial de preparo via filtro de papel. Ela ama café, mas só bebia o solúvel ou em cafeterias.

O mais interessante da história de evolução da produção e consumo do café no mundo é que sempre existe lugar para a quebra de conceitos e paradigmas. A grande mudança dos tempos atuais talvez esteja, justamente, na relação que existe entre as formas de consumo das espécies arábica e canéfora.

Valorização das diferenças como estratégia de evolução

Historicamente, o café da espécie arábica sempre foi considerado mais nobre, puro e de qualidade. E, talvez o Brasil tenha sido um dos grandes embaixadores desse conceito. O que chega a ser um contrassenso, logo o país da mistura e da diversidade não consegue enxergar beleza e sabor além do óbvio? É realmente uma questão amarga, tão indigesta quanto a bebida dos cafés colhidos verdes e pessimamente processados.

Os cafés canéfora sempre foram considerados como de segunda linha, que serviam para baratear blends (mistura) com arábicas de padrão baixo, ou para uso na indústria de solúveis. Realmente, as plantas da espécie canéfora são mais rústicas e produtivas e isto torna o custo de produção e comercialização competitivo para o uso industrial. Além disso, a constituição química de componentes como açucares, lipídeos, cafeína e tantos outros também são distintos entre as duas espécies.

O fato de a espécie canéfora apresentar uma “vantagem” com relação à sua facilidade de cultivo, talvez tenha se tornado o seu “calcanhar de Aquiles” ao longo dos anos. Isso fez com que os produtores de canéfora se preocupassem mais com a fase pré-colheita do que com as demais. Este tipo de produtor passou a buscar cada vez mais a produtividade e menores custos de produção. Tornou-se especialista em commodities. 

Os produtores de arábica, por outro lado, começaram a se diversificar para a valorização da qualidade de bebida e busca por mercados mais exigentes e que poderiam pagar mais por esse tipo de grão. De forma geral, algumas regiões foram extremamente bem-sucedidas nessa estratégia de evolução. Que o diga a Região das Matas de Minas, que há décadas ajudou a nomear o pior tipo de café que seria possível produzir e comercializar, o “Rio Zona”. E, atualmente, é uma das regiões mais emblemáticas da cafeicultura nacional, com cafés finos e de características únicas.

Esse processo evolutivo da cafeicultura no país, produtividade para o canéfora e qualidade para o arábica, fez com que passássemos a ser extremamente injustos com nossos conilons e robustas. Ao ponto destes grãos não serem considerados cafés e receberem a alcunha de veneno, praga, entre outros adjetivos pejorativos. Talvez se trate de um dos maiores bullying agronômicos da história da agricultura. 

Até entre os mais antenados do setor é comum ainda se ouvir: quer um café de qualidade? Procure no rótulo a descrição 100% arábica. E o consumidor passou a enxergar os nossos conilons e robustas como impurezas. A palavra blend ou mistura costuma frequentar as embalagens em letras miúdas.

Mas, como o café e a sua cadeia tem como características a capacidade constante de se reinventar, esta distinção negativa das espécies vai se tornando, a cada dia, mais obsoleta. 

Assim como os cafés da Região das Matas de Minas, os canéforas estão evoluindo a passos largos. Tanto que, em 2018, a Brazil Specialty Coffee Association (BSCA) convidou os produtores de conilon e robusta de todo o país a se associar. O Brasil é, antes de tudo, um produtor de CAFÉS. Isso significa que é uma nação plural, que tem capacidade de ofertar ao mercado volume e qualidade, em diferentes espécies. Poucos países têm essa capacidade e isso precisa ser abraçado pela cafeicultura, em âmbito nacional. 

Não se trata de um abandono às commodities, é apenas uma questão de diferenciação. Se o comércio mundial exige estratégias de guerra, é preciso proteger todos os flancos. E o mercado de cafés finos não pode ser ignorado, pois cresce mais de 15% ao ano. Mesmo internamente, quase 20% dos cafés vendidos nas gôndolas dos supermercados são de cafés finos e “gourmetizados” e os produtores de canéfora querem a sua parte desse quinhão.

Cafés do Brasil

O mal que aflige os produtores de cafés canéfora é a falta de investimento adequado em tecnologias para as etapas de colheita e pós-colheita, mas isto está mudando. Os cafés canéfora finos agora vêm de regiões que começam a ser reconhecidas como centros de origem de bebidas especiais da espécie como, por exemplo, as Matas de Rondônia para Robustas Amazônicos e os Conilons das montanhas capixabas ou planícies baianas. São cafés que vêm surpreendendo o Brasil e o mundo pela colheita de frutos maduros e secagem cuidadosa. Técnicas mais modernas de fermentação induzida ou positiva também são realizadas nesses cafés, que têm apresentado nuances de aromas e sabores, até então, inimagináveis para a espécie canéfora.

Se você ainda faz parte dos puristas, que acreditam que a qualidade é uma via de mão única, precisa rever seus conceitos. São muitos os caminhos que levam aos cafés especiais e a distância entre os canéforas finos e o consumidor estão cada vez menores. 

Já são muitos os que começaram a desvendar os segredos desses cafés de fecundação cruzada e que exploram a sua variabilidade genética em regiões com diferentes climas, solos e aspectos culturais de produção. 

Arábica ou canéfora, qual o melhor? A resposta para essa questão é: não existe pior ou melhor. As duas espécies têm características intrínsecas de aroma e sabor que podem ser valorizadas ou depreciadas de acordo com a forma que são manejadas. É como ter de escolher entre vinho branco ou tinto, bossa nova ou rock in roll. Para mim, a única pergunta que vale a pena aqui é… por quê?  Por que temos que escolher se podemos ter todos?

O Brasil possui uma cafeicultura tão única, rica e diversa que só deveríamos nos prender a um rótulo, que já estampa as nossas sacarias: CAFÉS DO BRASIL.

*Enrique Anastácio Alves é doutor na área de Engenharia Agrícola e, desde 2010, atua como pesquisador A na Embrapa, nas áreas de Colheita, pós-colheita do café e qualidade de bebida. Contato: [email protected].

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